O fado transforma-se e relembra-nos, independentemente de tudo, que a sua essência nunca morre. Transcender as conceções limitadas, de forma brilhante, não é para todos . Lila Fadista (voz) e João Caçador (guitarra), com persistência e determinação, conseguem. No final de contas, existe algo comovente em ambos e no Fado Bicha.
""Fado Bicha" vem da subversão, da experimentação. Está muito ligado a uma rebelião contra os termos, as dinâmicas e as estruturas que nos oprimem; e a uma experimentação pessoal, uma desconstrução do género, uma liberdade de movimentos.
É Fado Bicha precisamente porque tem esse caráter de não aceitar imposições. Porque o fado é sentir e deitar cá para fora e ouvir de coração aberto. As canções são as de todas nós mas vistas por um novo prisma. Ambos amamos o fado e sentimos que ele faz parte da nossa identidade criativa. No entanto, o fado não incluía uma parte importante da nossa identidade: o facto de sermos LGBT+, de sermos queer, de sermos bichas."
©Charles Chojnocki
Fado VS Acreditar?
Lila: Acreditar no fado, despi-lo da solenidade que adquiriu ao longo do tempo e viajar até às suas origens, o fado como voz dos destituídos, folhetim dos transgressores.
João: Acreditar que podemos alterar sempre o nosso fado, o nosso destino, e destituí-lo da sua carga fatalista.
Fado do marinheiro VS Fado da cotovia? Lila: "Meu amor marinheiro", um dos fados que cantamos: gosto da fantasia do marinheiro porque encerra a ideia do amor sem posse, do amor à distância sempre com a morte à espreita, debaixo do lençol.
João: Fado do marinheiro, sempre gostei da ideia de partir, do começar de novo, de não ser de porto nenhum. De vez em quando encontrarmos a ilha dos amores.
Cor VS Saudade? Lila: A minha tatuagem - um coração anatómico de onde brotam flores de muitas cores -, para me lembrar de que nem tudo é saudade e tristeza.
João: Saudade. Não podia haver fado sem saudade. Os mais antigos dizem que a saudade se veste de negro e eu gosto muito desse ambiente do fado.
Coração VS Ouvir? Lila: Responder "ouvir com o coração" é muito clichê?
João: O coração parece que nunca sabe para onde vai, não é mau ouvirmos os outros sentidos também xD
Liberdade VS Reflexão? Lila: Liberdade para refletir e reflexão para se trabalhar a liberdade, continuamente.
João: Reflectir para libertar.
Estórias VS Amores? Lila: Ai, eu adoro estórias. Adoro cantar estórias, com personagens e uma narrativa. Se forem estórias de amor, tanto melhor.
João: Amores, as estórias só servem para contar.
© Adam Moço
Tolerância VS Preconceito? Lila: Eu não gosto da palavra "tolerância" mas se a comparar com "preconceito", não tenho dúvidas. O preconceito manchou grande parte da minha infância e adolescência para sempre.
João: Em última análise a tolerância é uma forma de preconceito, por isso nenhuma das duas.
Medo Vs Conquistar? Lila: O medo faz parte da conquista. Precisamos do medo para saber com que linhas nos cosemos, para ponderarmos os nossos limites, para saber o que vale a pena romper e que consequências vale a pena arriscar. Posso dizer que o medo faz parte de tudo o que eu faço. O meu melhor amigo perguntou-me um dia que emoções descrevem melhor a minha identidade e eu respondi: o medo e o deslumbramento.
João: O medo nem sempre é algo mau.
Rir VS Chorar?
Lila: Pode ser as duas? Preciso muito de ambas. Ficaria muito desequilibrada sem qualquer uma delas.
João: A vida é feita destas duas coisas e boa por isso mesmo.
Abraços VS Facebook? Lila: Abraços sempre, adoro dar abraços! Li no outro dia que se provou que os abraços têm efeitos positivos muito concretos na saúde mas apenas se durarem, no mínimo, 11 segundos. Agora, cada vez que dou um abraço a uma pessoa próxima, tento que seja pelo menos de 11 segundos, ahah!
João: Abraços, sem dúvida.
Tudo VS Nada? Lila: Às vezes, muito e às vezes, pouco. Pouco também pode ser muito e vice-versa. Que seja com genuinidade.
João: Depende do dia.
Palco VS Casa? Lila: Epá, casa sempre ao fim do dia, por favor (às vezes, o dia inteiro). Mesmo que seja uma casa figurada. O palco é fantástico, é um sítio de invenção e de comunhão... mas de dúvida também, de exposição. Ainda me cansa muito, a energia que dispendo... Mas passados uns dias, já tou cheio de vontade outra vez!
João: Palco, a casa é a zona de conforto.
Aplausos VS Silêncio? Lila: Silêncio mas não absoluto. Com um burburinho de fundo, para que a solidão não seja total.
João: Os dois, é como respirar, é preciso inspirar e expirar.
Guitarra VS Letra? Lila: Ai, que dicotomias... Eu sou uma pessoa muito verbal, desde pequeno que as palavras exercem um fascínio muito grande em mim. Posso ser totalmente indiferente a uma canção e assim que leio a letra, obcecar completamente! Ou ficar emocionado a falar de uma letra que me toque especialmente. Ouvir o João a tocar guitarra pode ter o mesmo efeito porque ele toca de uma forma muito poética, muito sensorial, quase conseguiria descrever o sítio para onde me transporta.
João: Letra, o importante no fado é saber contar bem uma história, a música serve sempre a letra e não o contrário.
Sonho VS Realidade? Lila: Gostava de responder genuinamente "realidade", mas não posso. Sou um pisciano by the book e vivo no mundo da lua.
João: Sonho, o sonho serve para servir a realidade, serve para caminhar.
Adjectivos VS Verbos? Lila: Adjetivos porque dá para pôr muitos uns a seguir aos outros!
João: Verbos, os verbos implicam acção.
Início VS Final? Lila: Um não faz sentido sem o outro.
João: Muitas vezes são a mesma coisa. Os dois.
Hoje VS Amanhã? Lila: Tem de ser hoje, não é? O início deste projeto foi assim mesmo. Viveu de amanhãs durante muito tempo e um dia foi hoje e não havia volta a dar.
João: “Hoje é assim amanha não sei”.
Feelings VS Partir? Lila: Partir a louça toda ;) É um bocado o que estamos a fazer. Mas não pelo prazer de partir, é mesmo porque a louça não serve para nós, não cabemos dentro dela.
João: Partir, como disse em cima fascina-me a ideia de partir.
Nós VS Os Outros? Lila: Nós com os outros. Este fenómeno de othering cerceia a nossa capacidade de empatia e tolhe-nos todos os dias. Às vezes, é necessário mas na maioria das vezes é só preguiçoso - e, por vezes, é mesmo mal-intencionado. Tenho a convicção de que quanto mais tentarmos ver e sentir "os outros" como "nós", melhores serão as nossas decisões.
João: Nós, porque somos todos nós.
Obrigado, Lila e João.