Carlos Daniel Marinho | Amor
Parte 3
O Carlos colaborou nas Jornadas de investigación “Pasado, presente y futuro de los estudios de juventud. 30 años de estudios de juventud en España”, em Valencia, em 2015; a apresentação e defesa de um poster científico no VIº. Seminário de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, e a publicação do artigo «Agora tu: Um instrumento lúdico para o desenvolvimento de competências sócio-emocionais» na Revista de Estudios e Investigación en Psicología y Educación [Vol. Extr., núm. 05 (2017)], para o XIV Congresso Internacional Galego-Português de Psicopedagogia [6, 7, 8 Setembro 2017 | Braga/Campus de Gualtar | Universidade do Minho].
Fez parte do movimento activista, enquanto co-coordenador e porta-voz da primeira marcha pelos direitos LGBT+ em Braga, e co-fundador do coletivo «Braga Fora do Armário».
©Arquivo pessoal
Reabilitar VS Despreocupar?
Reabilitar. Humanidades. Tijolo a tijolo, e telha a telha, por sobre o talhe de planos alheios, à feição da planta mais íntima de cada um/a. Não acreditasse eu que tudo é reparável/que tudo é reparível, e por certo não teria feito de reabilitar humanidades um dos meus mais significativos métiers. Apercebo-me, como Saint-Hillaire constatou acerca do Organon, que também a humanidade em nós é como um desses monumentos arquitecturais ao qual se pode sempre acrescentar uma outra construção passível de desenvolver-se como um elemento indispensável para novas adições, mas que deve permanecer intocada para se manter um modelo de inspiração e um eterno regulador. Somando e subtraindo, reabilitar é então ser melhor. Face ao prazer de receber-me em casa, abrir-me ao mundo, e deixar entrar quem vier por bem, as despreocupações não são apanágio da minha vocação criativa: há que despertar, inquietar-se, irritar-se um bocadinho, há que arder, doer, perturbar, tem que tirar o sono, tem que tirar a cadeira e o tapete, tem que tombar ao chão. É ciência garantida: o ser humano anda melhor se rasgar alguns tendões. Há, por vezes, que bater no rés do fundo, sentir a nudez fria da planta dos pés descalços contra o chão sólido do mais baixo patamar a que podemos descer, para voltarmos à superfície, cônscios dos nossos limites. Deixar então sarar para sermos mais duros de casca, mais fortes de essência.
Nós VS Os Outros?
Os Outros. “There is an old joke about two english men who were cast away on a desert island for three years. It appears they never spoke to each other. Because they haven’t been introduced”[1]. É exactamente a mesma febre das aparências. A ideia da nossa coexistência pressupõe que esta se desenvolva e realize no mundo, pelo que o próprio sentido existencial se torna dependente da chamada do Outro. Ponha-se pois que tudo é relação, que no princípio não é o eu, mas o Outro – um encontro anterior a toda a imemorial criação, não-violento por natureza, dois pólos equivalentes constituindo-se em perfeita reciprocidade, nenhum deles dependente ou submetido entre si. Pondere-se agora a patada de violência que os princípios racionalistas unívocos da filosofia ocidental desferiram sobre a alteridade; pondere-se bem o rombo que a antropologia dominada pelo ego perpetrou sobre a imprescindibilidade do Outro na formação do indivíduo. Não deixa de ser comitrágico como na sociedade supraindividualista que formamos, onde cada ação humana se vê mais e mais regida pela indiferença de todo um medonho sauf qui peut, que a mais transversal a todos os casos que atenda, e aquela que mais flagrantemente se revele – ainda que nem sempre por expressa declaração –, seja a necessidade de cada um/a ser amado/a, inteiramente ‘propium’, aos olhos do Outro. Com efeito, cada cliente que atenda é, em si mesmo/a, uma saudável declaração de dependência; as suas queixas são sempre queixas de fios relacionais ou demasiado apertados, ou demasiado lassos. E nós, vilipendiadores/as do nosso direito de primogenitura, curvamos, em vexado silêncio ao miserabilismo deste imenso segredo de Polichinelo, sem garra para virar o tabuleiro, sem espinha para afirmar o que queremos, sem tacões para defender o que precisamos; enquanto empurramos o Outro para fora da moldura, à medida que se instala um espírito de manipulação e instrumentalidade, e o relacionamento interpessoal vai sofrendo a perda do carácter direto e humano, somos também aquela ‘gente que miente por un trozo de calor, que reza por que pare el ascensor, atrapado contigo’. Não há nós se nos deslaçamos do Outro. O Outro é um dever – o Outro é um direito. E o mundo bem que é tão mais extenso do que uma ilha ou um simples elevador de pruridos tontos.
Amor VS Desenhar?
O Amor. Sempre. Do gemido à apóstrofe. Salvífico. Por toda uma grata lição de humildade que só conheci dessangrando à ponta das suas facas. O amor é esse catre duro, abençoado; é o sacramento que recebo recurvo, perpétuo amador num domínio de arte maior. Se é pela beleza que nos elevávamos da discórdia à harmonia, e tal como o ácido é anulado pelo alcali, também a feiura da desilusão é exterminada pelo seu oposto, pelo seu antídoto natural – a beleza, tenho que o coração não pode, por muito tempo, achar beleza na vida sem conhecê-lo, ao seu flogisto, à esporada de alento que nos alça para a transcendência, sem se dar a essa forma de participação mística, de unus mundus. Sem o amor, enervam-se-me o vigor nos esforços, a firmeza nas resoluções e o ardor no muito que ambicione. E como tendemos a realizar na vida o que retemos no coração, se o amor é – assim eu o serei. Ao longo da vida, ao longo do amor, fui percebendo que não há mais na vida do que amar; a seu tempo, compreendi igualmente que como sói passar-se noutras artes do humano, é preciso aprendê-lo. Nem sempre, e por circunstâncias múltiplas, nos capacitamos da importância de levar o coração à escola – doemos então de iliteracia. Hoje sei que o sofrimento tem cátedra, que a felicidade tem doutrina; não é verdade que não haja um manicómio para corações, como Espanca queria[2]. A despeito dos erros que se cometam, não há quem trave a obstinação do amor quando ele se sagra contacto com o numinoso. Não capitularei: quero-o a ele, incondicionalmente, venifluamente – nenhuma outra privação me saberá tanto a morte. Pese o muito que da sua natureza não saiba ainda, pese o tanto que do meu funcionamento não entenda, vou crescendo e mudando, como quem risca palimpsestos no seu caderninho de desenhos – ponto a ponto, linha a linha, até amar melhor. Essa é a essência da criação. E criar é tudo quanto sei de estar vivo.
©Arquivo pessoal
Papel VS Computador?
Computador. É já uma das minhas mais recorrentes scies dizer que a vida se me faria muito mais simples se conseguisse concentrar esforços na dedicação a uma só atividade – ou, vamos, a uma atividade de cada vez –, não fosse ver nisso, por entre todo o inevitável acréscimo de responsabilidade e pressão, uma positiva forma de equilíbrio. A entrega, muitas vezes simultânea, aos meus dois principais ramos de atividade ocupacional – a psicologia clínica e a criação artística – implica um método e ética de trabalho suficientemente flexíveis para articular a lógica e objectividade do pensamento convergente, com a intuição e as operações mentais lógico-dedutivas do fluxo divergente. Gosto de trabalhar, e de trabalhar para a excelência do que faça; militante do ‘fazer acontecer’, objetivando o gozo das múltiplas concretizações, tenho-me por bastante work-oriented no meu dia-a-dia; não posso, porém, negligenciar as constantes solicitações do mundo exterior, e é também por meio do computador, e das redes sociais nele concentradas, que vou tentando o olímpico esforço de me manter em ponto de Arquimedes.
Silêncio VS Diálogo?
O diálogo. E as guliverianas viagens que ele permite. "Se as pessoas ousassem falar entre si sem reservas, haveria muito menos tristezas no mundo dentro de cem anos”. Na esteira da modernização social, porém, os conteúdos da formação cultural básica começam a ser transmitidos com uma carga afetiva diferente, deficitária, muitas vezes omissa por indisponibilidade de uns e outros – e quanto mais subtil é a expressão do afeto mais facilmente duvidamos dele; sem uma adesão emocional suficiente aos adultos significativos, o processo de aprendizagem das crianças e jovens vê-se perigosamente condicionado, senão mesmo impossibilitado. Um atento olhar analítico sobre os últimos cem anos de história societal mostrará a crescente diminuição do tempo real que os adultos passam com as crianças, a sua substituição por outras instituições ou pela exposição meios de comunicação. Paradoxalmente, nunca antes se assistiu à proliferação de tanto meio de comunicação com tão pouca comunicação efectiva entre as pessoas. Por onde anda, que lhe fizeram, que histórias conta a omissa ousadia de que fala Samuel Butler? "Precisamos tanto de conversar” como escreve David Mourão-Ferreira, uma das minhas principais influências literárias, “Precisávamos de fazer uma viagem de comboio, daquelas que se faziam antigamente, muito longas, em que se gastavam treze horas num percurso de trezentos quilómetros. Mas nem isso chegava... Precisávamos, sim, era de ir de comboio através de toda a Europa, de toda a Ásia, até Pequim ou Vladivostok".
Possível VS Impossível?
O Impossível. Pela invocação à transcendência, pela promessa de emancipação, pela ruga do cógito perplexo, pela pirraça da criança sonhadora, pela cegueira do homem ambicioso. Como Virgínia[3] contra a Morte, é contra ele que ergo “a minha lança e avanço com o cabelo atirado para trás” – o Impossível. Vivo do arrepio da surpresa, do súbito picar da agulha, desse ‘não haver o que o fizesse previsto’. Vivo de me querer trapézios para alturas maiores, além-mapas. Vivo de avançar como for, no simples e no superlativo, na olímpica braveza que as condicionantes do medo e do desânimo despertem em mim, até perceber a invisibilidade dos vitrais celestes, essa que por indeclarada lei ou fixo dispositivo me imponha à altura a limitação de uma alfândega (não é só até provocar o que temos por certo, que a sorte nos desvenda o constrangimento destas invisibilidades, desses ‘tetos de cristal’; não é só até chegarmos ao fundo da noite de todas as interrogativas, que mais nitidamente amanhecem os potenciais da nossa libertação). Lúcido e protestante: é assim que sou, é assim eu me quero. Para então erguer o queixo, esporear o cavalo, e irromper futuro adentro, rumo ao que Sancho perceba moinho e Quixote perceba gigante – ser mais, mais, mais, mais, mais.
Obrigado, Carlos.
[1] “Há uma velha piada acerca de dois ingleses que haviam naufragado numa ilha deserta, durante três anos, sem nunca terem faladoum com o outro – pois não haviam sido apresentados” (T.d.A.)
[2] “Pena é não haver um manicómio para corações, que para cabeças há muitos” [Florbela Espanca in ‘Correspondência (1912)’]
[3] Referência à obra ‘As Ondas’ de Virginia Woolf.