Flávio Rodrigues tem formação em Dança pelo Ginasiano, Balleteatro Escola Profissional, Dance Works Rotterdam e pelo Núcleo de Experimentação coreográfica. Em 2012 participou nos encontros Les Réperages/Danse à Lille e integra, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, a residência coreográfica Correios em Movimento/Dança em Trânsito, no Rio de Janeiro.
Desde 2006 que desenvolve os seus próprios projectos (Rúptil| Na era ds castigos incorpóreos e Desenhos | #1 #2 & #3 (2019); Magma| No Limite da Selvajaria (2018); AIM (2016); G.O.D. |Goddess of Desire (2015) são alguns dos títulos).
Foi intérprete da Companhia Ballet Contemporâneo do Norte, programador em colaboração com Isabel Barros no Festival Corpo+cidade desde 2014 e colaborador do Balleteatro desde 2012 como criador, formador ou performer.
OS MEUS PROCESSOS DE CRIAÇÃO
SÃO BASTANTE ONDULARES.
©Auto retrato | AIM em Festival Cumplicidades | 2016
EU OLHO PARA OS MEUS PROJECTOS COMO LUGARES VIVOS.
DES: O solo é a principal base da tua caminhada artística?
Flávio Rodrigues: Sim, claramente o solo é uma recorrência. Eu já fiz alguns projectos em colaboração com outros criadores, como também já recorri a um grande grupo de pessoas, como por exemplo em 2017 para a performance sonora "Efígie|Chorus Landscape" apresentada no Festival DDD/Corpo+cidade (e mais tarde no Festival Mexe), como também em 2009 com "Primavera" um site specific para os jardins de Serralves. Agrada-me o poder e a força brutal que é a voz de um colectivo, eu gosto de estar e de pensar em conjunto com outras pessoas, acho que a conexão com o outro é das manifestações mais belas que poderemos usufruir. No entanto, eu sinto uma liberdade muito especial em processos solitários. Não sou um artista propriamente coerente, nem sempre me consigo explicar de forma clara, não tenho horários fáceis nem constantes, sou extremamente exigente, egoísta e... à qualquer coisa que eu quero dizer sozinho, e que acontece quando estou sozinho. Sim, os meus projectos são a solo, são cada vez mais solitários, auto-centrados, contudo não desligados do outro, do universo. Acredito que ao falar de mim e por mim, falo de tantas outras e por outras pessoas.
DES: Preferes a ideia ou a realização?
Flávio Rodrigues: É muito complexo para mim desassociar a ideia da realização, inclusive valorizar uma perante a outra. Os meus processos de criação são bastante ondulares, no sentido em que nem sempre consigo perceber a origem de uma ideia, motivação ou prática, talvez porque me parece que uma realização dá lugar a uma ideia que por sua vez dá lugar uma nova realização e por aí fora, é um processo continuado e orgânico: um movimento gera um desenho, um desenho um som, um som uma cor, a cor uma série de gestos... Eu olho para os meus projectos como lugares vivos, constantemente receptíveis a serem revistos, tocados, alterados. Não estão fechados, e eu gosto muito de ir lá traz reactivar as "ideias" que outrora tive e mudá-las, aquilo que eu exponho nunca é uma repetição de algo que já fiz. Cada momento é único.
DES: Como percebeste que querias estar ligado à dança?
Flávio Rodrigues: A minha primeira professora de dança, Alexandrina Costa, era também pintora, e foi com ela que comecei a dançar e a desenhar, eu deveria ter uns 8 anos, talvez - é muito curioso que também foi com essa senhora que ouvi e pensei sobre o que é Espiritualidade. Eu era uma criança muito expressiva e flexível, a minha família dizia que eu tinha muito jeito, e eu gostava de dançar... mas não mais do que gostava de costurar, pintar ou escrever. Eu fui aquele miúdo que quis ser de tudo e que desistiu de tudo porque afinal, no entretanto, quis ser outra coisa. Aos 11 anos a minha professora de português aconselha os meus pais a inscreverem-me no ballet clássico no Ginasiano, mas acabei por desistir porque me tornei um adolescente punk que queria viajar, ser rebelde e fazer artes de rua. Aos 19 anos descubro a escola profissional Balleteatro, e foi brutal, porque é lá que percebo que para além de dançar poderia criar tudo o que envolve essa dança. Eu fiz o curso com a clara ideia que queria ser coreógrafo ao invés de bailarino, no entanto participei em muitos projectos como intérprete porque acho que, por um lado apareceu sempre alguém que me fez acreditar que tinha jeito e também porque me fui deixando levar... contudo, numa grande parte desses mesmos projetos eu acabava por, com um prazer muito especial, pensar os figurinos, a musica ou a luz. Hoje, eu não me sinto bailarino, e gosto de o dizer, porque me abre porta para um lugar onde eu não tenho um papel propriamente definido, é um lugar de experimentação, investigação e criação.
ALGUNS DOS MEDOS FORAM ULTRAPASSADOS, OUTROS NÃO, NOVOS SURGIRAM,
E ALGUNS TALVEZ SE TENHAM TORNADO EM FORÇA QUE ME FEZ AVANÇAR,
GANHAR CORAGEM E IR.
DES: O que mais te inspira no medo e porquê?
Flávio Rodrigues: Curiosa essa tua pergunta. Para o meu projeto AIM (2016) eu recorro ao medo como palavra-chave, na altura referia-me talvez à Europa e a uma relacionada constante ameaça de fim, referia-me também à enorme crise de refugiados. No entanto eu acho que o medo é algo que está, mesmo que de um modo subliminar, presente em vários outros dos meus projetos. Talvez porque me lembro muito bem de em criança ter medo da minha sexualidade, do meu género, dos meus gostos, vontades e sonhos. Eu cresci numa zona muito pequena, onde seres gay era uma doença e onde dançar ou costurar era coisa de "maricas". Eu tinha medo de ser motivo de gozo, tinha medo que me magoassem, então eu menti, escondi e disfarcei muito, e essas mentiras naturalmente alimentaram um medo que às vezes se tornava um gigante. Outros medos, tal como reconhecer o medo na minha mãe, avós e tias pelo facto de serem mulheres, reconhecer o medo da pobreza, da falência e do envelhecer. É claro que hoje outras palavras-chave emergem, alguns dos medos foram ultrapassados, outros não, novos surgiram, e alguns talvez se tenham tornado em força que me fez avançar, ganhar coragem e ir, talvez. Por isso sim, mesmo que não considere elementar, eu acho o Medo inspirador para os meus projectos criativos.
©Processo de criação para a performance RARA Um discurso ingénuo e utópico | 2013
O BOM E O MAU SÃO COISAS MUITO
COMPLEXAS PARA MIM.
DES: Sentes que tens mais facilidade em falar através da dança, do desenho? Chegar mais depressa ao outro. Usas a dança para falar de coisas boas, coisas más. É a tua protecção ao medo?
Flávio Rodrigues: Eu cada vez recorro menos à dança e talvez cada vez mais ao desenho, à ação/performance e ao ao som. O bom e o mau são coisas muito complexas para mim, tendo a afastar-me de definições muito binárias e/ou unilaterais, eu prefiro mergulhar em zonas mais cinzentas. Não acho que seja uma proteção ao medo, talvez seja mais uma forma de olhar para "ele".
DES: Onde tens as melhores ideias?
Flávio Rodrigues: "Melhores ideias...", não sei se tenho ideias que sejam melhores ou piores ... Mas claramente, caminhar é um processo rico para mim.
DES: Qual é melhor conselho criativo?
Flávio Rodrigues: Quando dou aulas (que é algo que cada vez dou menos), tendo a esforçar-me para ser um professor que opta pelo reforço positivo. Não gosto de dizer que algo "não está bem".
DES: Tens algum processo criativo que te ajude a manter tranquilo?
Flávio Rodrigues: Meditação e caminhar.
DES: Qual foi o trabalho que mais gostaste de fazer?
Flávio Rodrigues: Alguns projetos surgem de processos mais interessantes que outros, claro. Mas não sei mesmo como salientar um que tenha gostado mais.
NÃO CHORO MUITO, NÃO.
MAS FICO MUITO TRISTE.
TENHO SAUDADES.
©4Bid Gallery em Amesterdão | Performance Rúptil -Na era dos castigos incorpóreos| 2019
QUERO EXPLORAR A MADEIRA COMO MATÉRIA BASILAR.
DES: O que gostavas de fazer que ainda não tiveste oportunidade de concretizar?
Flávio Rodrigues: Inicio em 2020 um projeto que quero muito concretizar, que é passar mais tempo na oficina de marcenaria do meu Pai. Quero explorar a madeira como matéria basilar.
DES: Como vês o futuro da dança?
Flávio Rodrigues: Vejo um futuro altamente. Mas claro, reflectir sobre a dança no território político, financiamento e essas questões mais, é toda uma outra e longa conversa. Mas assim em modo resumo, é lógico para mim que acho pequena a "fatia de bolo" que o estado português destina para a cultura, e dentro dessa já pequena "fatia", acho ainda mais pequena a "fatia" para a criação artística... acho que Portugal precisa de entender a importância da criação artística, entendendo nesse seguimento, que a arte não tem que ser (de modo imediato) lucrativa financeiramente, porque o seu lucro é de outra natureza.
DES: Há alguma coisa de que te arrependas muito?
FLÁVIO RODRIGUES: Não, assim que me lembre de repente, não.
DES: É difícil fazer-te chorar?
FLÁVIO RODRIGUES: É muito difícil algo fazer-me chorar, as vezes até me assusto com isso, confesso, ouve uma altura em que cheguei a achar que tinha os canais lacrimais bloqueados... A minha mãe conta-me que em criança chorava muito, talvez tenha só esgotado as lágrimas. Não choro muito, não. Mas fico muito triste. Tenho saudades. Perco-me em melancolia, por vezes.
DES: Até onde irias por amor?
FLÁVIO RODRIGUES: O que é o amor?
DES: Obrigado.
“caminhar é dar forma, seguir um percurso, modelar com os pés, se o atendermos a concepções mais antigas. Esse andar que faz caminho, vaguear poético, pode ser visto como um passeio, mas também como exploração, como viagem surrealista ou deriva situacionista”
Jean-Jacques Rousseau