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Depois em Seguida

CULTURA | MUNDO | ENTREVISTAS | OPINIÃO

22 de Setembro, 2018

Carlos Daniel Marinho | Casa

Parte 1 

O Carlos é Mestre em Psicologia Aplicada e pós-graduado em Psicologia da Família. O seu trabalho tem vindo a focar, essencialmente, perturbações de humor e ansiedade, comportamentos problemáticos do público infanto-juvenil, e dificuldades da parentalidade sadia, estando a desenvolver programas de promoção de competências sócioemocionais e de autovalorização para adolescentes, e a conduzir workshops e palestras sobre diferentes temáticas. Além do serviço privado, colabora ainda com o projeto «Animantes», em Braga, na co-dinamização de workshops lúdico-pedagógicos, arteterapia e artcoaching, com crianças, adolescentes, adultos e séniores...

 

Define-se também como criador artístico freelancer, investindo em diversos campos do domínio artístico sob o seu próprio labelling «Carlos Marinho – Criador Artístico». Ganhou o primeiro prémio no Concurso Literário Internacional «Mérida-Évora», representando Portugal, com a obra A Casa do Passado. Venceu o concurso literário «D. Sancho I», com a obra Chá de Bonecas, e o prémio no Concurso Literário Ovarense «Dar Voz à Poesia», com a obra Copas. Em 2015 publica o seu primeiro livro de contos Y. É autor do blog de viagens «Não Se Pode Morar Nos Olhos de Um Gato».

 

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 ©Arquivo pessoal

 

Perfecionismo  VS Casa?

Perfecionismo – uma e outra vez. Nos vários domínios da vida, se ao amor não o contarmos aqui, é esta ventania que melhor me põe a nado cada barco de evolução (talvez, penso eu, nenhum outro vício ou amorfa realidade quadre tão bem a quem gosta de se comprazer no superlativo). Pelo flirt da inquieta centrifugação, pela angústia persecutória que tanto me excita o sismógrafo cardíaco, pelo reforço intermitente de um desejo de chegada em perpétua abstinência de consumação – há nele toda uma pressa de roda em movimento que me incita ao passo exploratório, que me faz construir mais mundos, por dentro e por fora. O perfeccionismo é uma forma de compromisso com a excelência das minhas próprias percebidas capacidades. Acredito no poder de me realizar a vários níveis, acredito que esses vários níveis precisam de ser expressos e realizados até ao seu máximo potencial – fiz desta estrada uma casa muito minha: a que me vê chegar como work in progress, puxado pelas exigências do gerúndio de ir sendo, e que mais sossegado me vê prosseguir avante, no encalço de mais solicitações. Qualquer outra, no seu embotamento de estação terminal, é apenas uma triste afirmação bocejada, uma seta que passa o alvo e já só jaz no chão, sem graça e sem polémica. Essa casa adoece rápido num museu de silêncios findo o pico gritado do orgasmo bom; é a queda de véu do ‘não há mais’, o desfecho de livro onde morre o personagem principal, a intransponibilidade do the end. Enquanto o perfeccionismo é toda uma sugestão de iminência orgástica para a dinâmica constritiva de um edger: é essa luz verde, sempre mais além, nunca para se agarrar em mãos, que tanto nos espipa a ânsia leitora dos amores do Grande Gatsby. Nada animará mais o ritmo de um trotamundos do que trazê-lo ao fiel da balança, entre a intenção e o ato, suspenso na periclitância transitiva de um para o outro, expectante na vertigem de dobrar a curva para o fim. Há um gozo íntimo neste discreto suplício de Tântalo, um gozo em vê-lo deixar-me insaciado pelo constante recuo do fim: é dessa falta, que nasce o desejo. E é do ovo do desejo que se multiplica a vida toda.

 

‘Chá de Bonecas’ VS Suficiente Solidão’? 

‘Suficiente Solidão’. Percebida como processo, toda a criação se arrasta de pólo a pólo num altissonoro vagido de dor parturiente; segue-se que as delícias libertadoras do alívio se sobreponham à última contração expulsante, quando para nosso regaço tomamos, por fim, o produto criativo na sua versão derradeira. E o que é lei de vida é lei na arte: da penumbra do imaginário criador, amadurece e cai no mundo um algo de novo, objeto de luz, extraído do inexistente, que agora se soma à realidade maior para ser apreensível pelos demais. Na obediência a este movimento centrífugo, não só a criação valida a nossa pertença ao mundo, como retroage sobre a nossa subjetividade individual, reafirmando-a. Eis porque a criação é, inescapavelmente, um processo relacional – mesmo que não interativo, i.e., não objetivamente exposto ao olhar dos outros. Na minha experiência, há um sentido de missão que me transita do sonho para a dor, que me leva da dor ao alívio, e é de querê-la cumprida que recai sobre cada andamento do processo um febricitante feitiço de prazer. Ainda assim,expressões artísticas como a escrita de literatura ou poesia podem ser bastante solitárias. ‘Chá de Bonecas’, tal como o seu antecessor, ‘A Casa do Passado’, presta-se a exemplificar bem esta realidade. A despeito de me ter valido um primeiro prémio de concurso literário, e constituir um marco no percurso da minha afirmação pessoal como criador na área das letras, é hoje um artefacto menos excitante, obscurecido pela atualização da minha própria maturidade emocional. Na verdade, quanto mais acorro às solicitações do mundo externo, menos apelativo vejo o isolamento a que a criação me vota. Não surpreende assim que um dos meus mais gratos prazeres o encontre em partilhar as rédeas do processo criativo com outra pessoa. Tal foi a oportunidade de ‘Suficiente Solidão’, projeto de cruzamento entre vinhetas literárias da minha autoria, e homólogas ilustrações a punho de Umur Güven, sobre a superação do término de uma relação (o projeto foi exibido em exposição formal no dia 20 de agosto de 2016, no café-bar e galeria «Estúdio 22», em Braga). Além do gozo de trocar o silente monólogo da produção tipicamente eremítica pelo activo confronto dialógico entre ambos, de me sentir rumo ao encontro do outro, ser inspirado pelo outro, e derradeiramente encontrado pelo outro, o projeto permitiu-nos uma sadia evolução conjunta, em sintonia com a moral da história (pois na altura, éramos os dois vítimas de um coeur brisé), eternizando-se em história viva, para lá da categoria de mero happening, continuando ainda hoje nas constantes renovações da nossa amizade. Se no tempo do ‘Chá de Bonecas’ fruia de atrever uma forma de eternização contra a noção da minha própria finitude – com efeito, as únicas coisas que restam e lembram todas culturas anteriores à nossa são os seus escritos –, e a ânsia maior se constelava em torno do produto final, com  ‘Suficiente Solidão’ passei a recitar o famoso credo horaciano, a não querer da imortalidade jura alguma de boaventura, a deixar os caminhos da glória, da graça e da gravidade partirem audaciosos sem mim, preferindo antes do processo, o gosto da companhia humana que me faz os dias mais presentes. De preferência amesendados. A beber chá. 

 

Felicidade VS Beleza?

Beleza, sempre. Quando a felicidade é tantas vezes pervertida para os excessos da euforia, tão terrível, tão sinuosamente hipervalorizada pelo postiço das expectativas sociais, quando nada exclui aos seus bastidores um temperamento rude, áspero e insensível, digo com Wilde que “o suficiente é tão satisfatório como um grande banquete”, e prefiro-me a boa zufriedenheit da tranquilidade. Mas Stendhal tem a sua razão ao afirmar que a Beleza é uma promessa de felicidade. Suponho que me não tivesse sintonizado na frequência da continuidade histórica a que digo pertencer se a todo um sentido estético apurado por séculos de demorada evolução, me não tivesse educado a experiência do existir numa determinada lógica de elaboração emocional, tal como não teria abraçado esta estética se os rios da ancestralidade, a confluir no que trago de singular, me não tivessem predisposto as águas ao gosto de um certo toque salino (isto de ser Marinho tem que se lhe diga). A sugestão de Beleza impressiona-me como uma agradável légèreté de que se indistingue o exercício da minha própria respiração. Tenho vivido para a Beleza e pela Beleza das coisas – reconhecê-la e enfatizá-la no que vou percepcionando e experimentando, converti-o na paixão com que até agora tenho dourado a extensão das minhas horas. Na medida em que o meu esforço criativo se vaza nos moldes da encarnação da ideia através da forma em função da Beleza, a Beleza define-me como esteta. A atividade como esteta fez-me perceber que não há evolução pessoal sem o desenvolvimento de todos os canais, mecanismos e dinâmicas de expressão, que não existe vida sem criação e criação sem a possibilidade de transformação e reconstrução, e que sem estes elementos não há felicidade. Mais tarde, a Psicologia permitiu-me não só perceber-me dotado de todas as possibilidades para a minha auto-realização, e instrumentalizado internamente com todas as ferramentas necessárias para o desenvolvimento das minhas competências físicas, morais, pessoais, relacionais, sociais, intelectuais, interculturais, mas também ativá-las para ir actualizando uma versão cada vez melhor de mim mesmo.

 

Boca VS Olhos?

Boca. Os olhos são para as lonjuras castas da contemplação, para as passividades do platonismo, para os longos e maçudos enredos da idealização, para os velhos chorarem o intocável, para os jovens carpirem o impossuível. Os olhos pestanejam demais, arrastam-se demais, inconcluem-se demais, têm o vagar da ronda em círculos de um polícia preguiçoso. A boca é a embaixatriz original do comércio sensitivo. É um órgão assertivo, vai mais longe. Não só a que fala, mas a que beija – atirada das canelas, tem menos intermitências que o olhar. É a ninja das missões cardíacas. Os olhos abrem bifurcações, mas a boca fecha estradas, não cuida sinais confusos – é a do ‘é agora ou não é’, a seta ao alvo inteiro, o termómetro de genuinidades: não aceita pessoas pela metade, não curte digitalidades, não quer desejos reticentes. Há nela a certeza que securiza e que serena. É preciso boca – é urgente boca. Sobretudo num choque de carne celulada e gordurosa com a carne de outra boca, na sua pegajosidade mais salivar. Haja boca em socorro do instinto de terror que cresce face às paixões do corpo; boca contra a mordaça das abstinências e flagelações a que persistentemente o votamos. Os dias de hoje vêem-nos demasiado clivados entre espírito e matéria; estamos a perder a compreensão e experiência desta última como a algo sagrado, como algo a honrar e a fazer preito. É preciso boca. Boca para despenalizar o culto dos sentidos, elevá-los a uma nova espiritualidade. Por verbo que se diga ou osculação. Os olhos, já eu os fecho para não ver tanta garganta. A boca que não se cale. Boca, boca – trinta e três vezes boca.

  

Moral VS Abraços?

Abraços. Múltiplos. Torrentosos, em proporções de monção, para os que não haja guarda-chuva resistente. A todo o pano, em queda-livre, de malas e pé fincado, do alto à diagonal, até ao sufoco, até à xifopagia, até à fusão indestrinçável (da fusão sem confusão). Dos fortes, dos wrestlerianos, dos à la Godzila, dos das fábulas sem moral, dos que desalinham o make-up e despenteiam papelotes, dos que magoando um pouco os ossos se atiram, doidos, às portas da alma, que são trick and treat simultâneos. Abraços que se deixem entrar, nem sempre sem licença concedida, abraços party-crashers, de caroço e polpa cheia, abraços-medicina para a cura deste parvo higienismo sensitivo que a sociedade atual teima em disseminar no pavor de qualquer atentado ao seu eu logocêntrico. Pois hoje, tristeza, com o alargamento dos espaços de opção às esferas próprias do estilo de vida e da moral, o individualismo sagrou-se como valor dominante, fazendo-se largamente responsável por obscurecer a imprescindibilidade do Outro na criação e na manutenção de relações significativas. A minha exposição de arte plástica «Pedra Papel Tesoura Beija-me» ocupou-se deste tema. A morte do Outro adoeceu o afeto, fez-nos inaptos para o diálogo, deficitou-nos a socialização, estranhou-nos para o isolamento, deformou-nos a moral. Quando sincero, o afeto não sabe de alfândegas; quando real, não pode esmagá-lo nenhum carimbo de censura. Cheio, vigoroso, nada como um bom abraço para que prevaleça a voz do desejo por sobre a do dever. Sobretudo quando o dever, de tão contrário à orientação centrífuga do que é ser-se humano, nos teima em digitalizar as experiências de afeto. É pois preciso rematerializar o corpo, revincular o indivíduo ao grupo, tornar as relações interpessoais diretas e corpóreas, dar-lhes ‘xixa’ – ‘enxixá-las’. Fazer do mundo real a nova trend, o dernier cri. Só de pensar nisso… venham de lá esses ossos.

 

Perder VS Ganhar?

Ganhar. Estar em sintonia com o meu persistente desejo de auto-atualização, com o drive que me alça para diante. Desde longe trago a atenção em alta, a tendência para fremir pelas mais pequenas coisas, de me comover mais facilmente a propósito de qualquer minúcia, uma urgência analítica e insaciavelmente curiosa na operacionalidade das minhas faculdades cognitivas, uma necessidade premente de adquirir conhecimento, de ter a mente ininterruptamente ocupada, entretida a observar, a examinar, a perceber, a cruzar, a criar – um constante alerta de emergência, um querer ser muito, um querer ser tudo, e tudo ao mesmo tempo. Gosto de expansões, gosto de vida. E como verdadeiro hoarder de experiências, a grande batalha que travo é contra os desânimos do onismo, esse triste reconhecimento do muito pouco que conhecerei do tanto que há no mundo a conhecer-se. Suponho que tenha um bocadinho de Schopenhauer em mim ao defender que somos tanto mais quanto mais nos for dado a conhecer existir. Ganhar, claro. No que der, quanto puder. Ganhar tempo, ganhar tino, ganhar-me o pão, ganhar a horas, ganhar nome, ganhar raiz, ganhar coragem – ganhar! – ganhar simpatias, ganhar-lhe o beijo, ganhar confiança, ganhar-lhe a confiança, ganhar a partida, ganhar a dianteira, ganhar-me a própria palma. Ganhar!

 

Liberdade VS Escrever?

Liberdade. David Attenborough, o naturalista britânico, dizia que ao cantar a laringe humana revelava uma muito maior variedade de sons do que aquela exigida pelo simples ato de falar. A expressão literária representa, para mim, o mesmo uso otimal do que trago em potência. Mas humano que se veja proibido de (re)produzir-se em liberdade, a quem se lhe dissuada – passiva ou agressivamente – a necessidade de ampliação pessoal, é humano que de certo acabará deprimido nos engasgos de uma implosão. Hoje aceita-se comummente que uma das mais gravosas consequências da censura no pré 25 de abril tenha sido não o embargo das obras em si, mas o desânimo a que esse embargo acabaria por conduzir os/as seus/suas escritores/as. Não creio que haja evolução pessoal sem o desenvolvimento de todos os canais, mecanismos e dinâmicas de expressão, tal como não creio que exista vida sem criação e criação sem liberdade auto-atualizante. A censura, porém, persiste ainda: sinuosa, invisível, não-oficial, banalizada – em todas as práticas sociais que nos despromovem a consciência crítica, que nos desvalorizam a originalidade, que nos suprimem a autodeterminação. Uma educação que substitui os potenciais dos alunos pelo conformismo à coletividade, que incentiva a que o valor que nos atribuamos radique num parâmetro imposto desde o exterior, regulado por terceiros, não poderia ter outro efeito. Entendê-lo, no meu ponto de vista, reclama o uso de uma abordagem crítica por parte da epistemologia moderna, e um ativismo omnipresente em militância a favor da liberdade – sobretudo a liberdade rúbida e ruidosa, canhão à solta, numa chinfrineira de Carnaval rua afora, a desoras da decência, a bater tachos e tacões, arrastando garridas traînes de purpurina e de missangas, a que se edifique na celebração do que é honesto e coerente, a delatora de tóxicas invisibilidades, a que se sagre roteiro de humanização, que nos acorde a todos/as deste coma lúcido de passividade.

 

Tradição VS Vícios?

 

(...)

 

Continua...