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Depois em Seguida

CULTURA | MUNDO | ENTREVISTAS | OPINIÃO

23 de Setembro, 2018

Carlos Daniel Marinho | Sentido

Parte 2

O Carlos foi assistente de encenação na Escola de Teatro e Dança de Braga foi relações-públicas do Grupo de Teatro Amador «Só Cenas». Em 2015 organiza a exposição «Suficiente Solidão», em parceria com Umur Güven, apresentada no espaço «Estúdio 22», em Braga. Apresentou «Nolens Volens», trabalho coreográfico que acompanha os diferentes estágios de desenvolvimento da relação amorosa, e a exposição «Pedra Papel Tesoura Beija-me».

Desde finais de 2017, é também o organizador do projeto «Encontro Criativo», consistindo em momentos de convívio informal destinados a artistas, amadores/as e/ou profissionais, connaisseurs e curiosos/as acerca do pensar e fazer artísticos, com o objetivo de proporcionar um espaço de diálogo, reflexão e partilha de opiniões sobre a criação artística; incentivar à apreciação e à criação artística, cativando e fortalecendo um público produtor no domínio criativo artístico.

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  ©Arquivo pessoal

 

Tradição VS Vícios? 

Tradição. Há que pensar que a casa do que somos, por força de várias gravidades, só conhece fundação quando erguida desde o solo, quando presa de raiz. À tradição, devemos-lhe esse primo contentor em que o imaginário social nos antegoza; esse que depois nos concretiza e, sangrentos, nos recebe em mãos parteiras. Pelo estatuto de elo acrescido à imemorial cadeia do tempo, longa vida à tradição. Mas como acompanhar o frenético timing das mudanças sócio-históricas não está para qualquer juventude, há pois que tombá-la sobre a marquesa médica, e atender-lhe qualquer queixa artrítica. É imprescindível que a tradição se actualize e afiance adequação às renovadas correntes da vida para que assim conserve os seus predicados de anfitriã primeira. Descoordenando-se do contínuo histórico, a sociedade cristaliza, adoenta e perece. Já os vícios são hélio para o que a tradição tenha de âncora. São sintomas dessa mesma descoordenação. Tanto mais gravosos quanto mais fundos os cortes lacerados. Mas tal como a sintomatologia do patológico é, muitas vezes, o que de mais saudável podemos exibir, também os vícios são alertas de despertador para o que haja “de podre na Dinamarca[1], são incitadores da ativação de recursos pessoais e comunitários para que se conserte a infelicidade. Pondo-se que ser feliz é ser-se em sintonia com os requisitos que nos individuam na multidão, é para este sentido de equilíbrio que cada dia rumam os meus esforços pessoais: escapar à fusão homogeneizante do coletivo sem perder a necessária coordenação com a sociedade. Os vícios traem a expressão das tradições estúpidas, das tradições sem nexo, das que se represam pela gravidade bolorenta dos dogmas em série, das que se mineralizam em silêncio atónito pela discreta imposição dos opressores, das que punem e mais fundo violentam a pluralidade humana. Quem me teria na conta de um anárquico timidamente insurreccional se não quisesse a estas tradições – às que mais enfurecem os não-apaziguadores, e lhes levanta os estandartes da oposição; quem me teria ativo se as não beijasse como Judas beijou Cristo, se as não tolerasse como às promessas boas de um caos parturiente, como aos silêncios bem pontuados, que nos resgatam a música à cacofonia? Em larga medida foi este espírito que me instigou à participação como co-organizador e porta-voz na primeira marcha pelos direitos LGBT+, em Braga, no ano de 2013; é este espírito que continua a instigar algum do meu trabalho artístico. Importa lembrar que o que não tem força de edificação, pode motivar forças de reação. É pois precisa a tradição velha, e estagnada, os vícios do seu legado poluído, a confusão demencial dos seus choques intergeracionais. São os sustos que ajuízam as gentes. É a preocupação com o vício da tradição caquética que nos enfuna as velas do progresso. E uma sociedade cresce, no dizer do provérbio grego, quando os homens mais velhos plantam árvores, sob cuja sombra sabem que nunca se sentarão.

 

Promessas VS Realismo?

Realismo. Sonhos que os preze, não me entendo senão como propagandista do ‘fazer acontecer’. A Verdade, contrária no sangue à natureza das promessas, não aceita essa intolerável suspensão de agência concretizadora. A Verdade quer-se – é-se – já, com toda a enérgica imediatez do presente que a manifeste: não há flair de procrastinação que a seduza, nem cómodos de laissez-passer que a embrandeçam. Por mais dura e áspera que chegue à carnadura humana, quando batida de frente, contra os bicudos cornos da sua inequivocabilidade, há na Verdade uma paz que nos organiza e nos serena, pois é dela constituir-se qualidade fundamental das próprias coisas, e impor-se afirmativamente por sobre qualquer temporária anestesia de ilusões. Nesta linha, compreende-se que o sofrimento não seja mais do que a resistência ao que ele próprio comporta. Conforme escrevo no meu livro «Y»: “Adormecemos com a primeira das mentiras, e assim que a risonha aurora nos vem beijar a fronte, os novos significados percebem-se como sólidos numa única versão substitutiva tomada por verdade – é assim (…) que nascem os mitos do coração. […] os atalhos são sempre mais demorados”. Depôr as presunções da ilusão, devolver a coroa à Verdade – sagrarmo-nos império de nós próprios, ajoelhando a essa rainha que tudo pode.

 

Segredos VS Ambições?

Segredos. Esfinge sem enigma que o queiram pensar, não há quem me enerve o fascínio sentido face ao mistério do ser-se humano. Quer percebido pela Arte, quer percebido pela Psicologia. De todos os quadrantes, por todas as inevitabilidades – no que tenham de mágico, de confuso, de inspirador, e de angustiante –, nada revela mais pitorescamente a nossa natureza do que o que mantemos, consciente ou inconscientemente, escondido. Foi na qualidade de psicólogo clínico, privilegiado agente às ordens da humanização do humano em nós, que ao ver o adoecimento da dor, me senti evocado a demonstrar uma simples aceção: a de que o sofrimento problemático resulta da violência que exercemos sobre nós próprios ao ignorarmos a chamada do dever – e todo o dever é aceitar a vida tal como ela nos chega. Mais do que a eliminação do sintoma patológico, o dever interior impele a uma demanda pela verdade, uma demanda pela individuação de cada pessoa, um levá-la à mais profunda sintonia consigo mesma. Ainda assim, tenho atestado quão mais fácil é para muitos/as permitir que a verdade seja fechada em dogmas, segredos e ‘não ditos’, do que aceitar-lhe as inerentes emoções negativas; tragicamente, é a resistência a essa mesma verdade que mantém e justifica a própria vulnerabilidade emocional. Muito ao gosto pós-moderno dos ideais do homem/mulher-máquina, o sofrimento da experiência problemática é subaproveitado como possibilidade de aperfeiçoamento pessoal, daí apreciar tanto a observação de Kierkegaard sobre a ansiedade ser um sinal da perfeição humana. Quer no meu trabalho como psicólogo clínico, quer nas minhas produções criativas de cunho artístico-pedagógico, é pela fissura entre o rosto e a máscara que mais ambiciosamente intervenho, delator de falsos ‘eus’, de ‘eus’ ideais, resgatando erros, falhas, insuficiências e percebidas incapacidades, às garras da presunção de omnipotência a que não raro o medo nos mantém atreitos.    

 

 Ironia VS Deus?

Deus. O arquetípico, bien entendu; não o teológico. Com efeito, o que interprete da religiosidade faço-o limitando fronteiras com a teologia. Não sou de anseios religiosos quanto à natureza ou aos atributos de Deus, como o são os de maior afinidade teológica. No limite, fascinado pela impenetrabilidade do mistério da existência, as minhas aflições e angústicas são todas elas puramente mágicas. Arquetipicamente falando, no dizer de Jung, "querendo ou não, Deus está presente". Basta como interioridade significativa. Recordo, a este propósito, como no ano de 2009, em correspondência com o Dr. Alfredo Dinis, director da Faculdade de Filosofia de Braga, me referi a Deus como a um outro nome para o nosso próprio. “Se tu investigares corretamente” respondeu ele citando Hipólito de Roma “[tu] O descobrirás, unidade e pluralidade, em ti mesmo (…), e saberás que Ele encontra a conexão como sendo tu mesmo". Ainda hoje, estas palavras compõem o discurso que mais se aproxima do meu entendimento sobre Deus; são elas que me sustêm o esforço de individuação face à consciência coletiva. Não há por que presumir desta perspetiva científica um qualquer insulto à espiritualidade; a espiritualidade sobrevive sem Deus teológico. Os meus comércios espirituais são transaccionados numa espontânea abertura para o ilimitado mágico da existência, para o transcendental. A ironia – entendida como discurso – é, nos dias de hoje, uma febre especial. Vivem-se tempos duros, rigidificados pelo pensamento operatório, pelo raciocínio concreto, orientado para o real, com interesse no atual e fatual, onde pouco se liga às emoções, não há ligação à atividade fantasmática – o pensamento está ligado à acção racionalista e pouco ou nada à transcendência, ao simbólico. Por seu turno, as extensas possibilidades da globalização revelam já todos os segredos da vida, sem respeitar idades nem sensibilidades, quebrando o fascínio do mistério, o encanto do tabu, a magia da incerteza, o que não raro se traduz em falta de motivação e tédio. Neste contexto, a ironia vejo-a como a mais uma das muitas scies do imenso desencanto, como a um suspiro emurchecido provocado pelo atual esvaziamento do simbólico, como a um gracejo giro mas efémero diante da angústia da finitude e do desconhecido, passivamente ressentindo a percebida ausência de moral e finalidade da existência – com Shakespeare “[it] struts and frets his hour upon the stage and then is heard no more”. Já Deus, arquetípico ou teológico, tenho-o por uma praxis do simbólico: do simbólico a cuja prática tanto precisamos dedicar atenção. Deus é coisa saudável – não creio que possamos dar-nos ao luxo de negligenciá-lo; a ironia, bem, a ironia é simplesmente chata.

 

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 ©Arquivo pessoal

Muro VS Memorial?

Memorial. Num mundo engripado de não haver solidariedade entre gerações, faz cá falta o xarope que nos aclare ao ouvido do corpo: ‘és a promessa ovular que o amor fez aos teus antecessores’. Um grito que acorde inteira a consciência da nossa raiz comum. É daí, este ancorar-me mais sólido às imprevisibilidades do presente – o ter-me aqui, e aqui mesmo, a contar toda a história deste tragicómico gerúndio de ir sendo, cada vez mais grato, cada vez mais feliz (também há mais rugas no processo). Porque ser contínuo é ser inteiro – e eu vim percorrendo campos e canais, dividindo mares negros, girando escadas e esquinas, saltando lajes sobre mortos: elo de cadeia a unir passado e futuro, juntando-me às crianças ainda por vir. E porque é de saudáveis ruturas esta estável continuidade, eu – eu de nome que orgulhosamente se declina plural –, quero um epitáfio novo, a punho próprio – garrido, vibrátil, altissonoro –, por cada Carlos que se reatualize e se substitua ao anterior; quero um sempiteterno minuto de silêncio por cada casca que tombe em vitoriosa excrescência de ecdise, e que por sobre as tarjas da minha mais recente versão seja encrostada, toda jóia, a rigidez de uma pele moderna. Quero logomaníacas missas que levem ao templo a persistência do meu existir, e que em longas romagens percorra o mundo a extensão da minha continuidade histórica, sem travões, sem apeadeiros, sem alfândegas, sem ruturas. O que me faça lembrado. O que me faça pertença. O que me faça ser.

 

Morte VS Vida?

Vida. [Só há vida]. Vida af. Suficientemente grata, amada em ato, como ato de amor, reconhecida no que traga em potência, no que mais inspire a multiplicação (que “se mais terra houvera, lá chegara”…). Vida que seja riso desgovernado, escândalo de beleza, como para Lineu o foi, em lágrimas, o tojo de Inglaterra; que seja cair de Alice à pipa cheia, amiga, fosfatada no seu negrume, que se perturbe e se desleixe no fascínio dos seus tautológicos mistérios, perfeita nesta agridoce assimetria entre o que se quer e o que se obtém, que siga a esfusiante excitação do mundo, que saiba primeiro desejar o que lhe é necessário para depois amar o que se deseja, que queira à morte, porque a “gente só nasce quando somos nós que temos as dores”. Este verso, da Natália, recito-o muito amiúde, quer em contexto clínico quer informal, quer nas preces do íntimo comércio com a minha própria compreensão. Há que querer-se o catre duro para se suprir a necessidade de repouso. Escrevo-o no «Y», obra que, à sua maneira, compreende um discreto estudo sobre a dúvida das bifurcações que surgem ao longo do caminho do crescimento, que se debruça fundamentalmente sobre a infinita capacidade de escolhemos renascer das tantas mortes que nos ocorrem, de escolher o poder de reescrevermos a nossa própria história, de nos conciliarmos com o passado e de nos relançarmos para o futuro. É preciso saber morrer bem, para se viver melhor.

 

Plenitude VS Omnipotência?

Plenitude. O eu não entende de metades, não substiste parcialmente: a dor é toda de quem se deita nas diferentes camas de Procusto da vida, e se estilhaça em recortes de amputação. Viver afeto ao medo de desagradar a outrem, à ânsia de agradar aos demais (mesmo que a expensas das próprias necessidades e desejos), interiorizar um ‘eu ideal’ num soberbo inchaço de omnipotência, reprimindo os seus instintos pessoais ou, em certos casos, desenvolvendo uma tendência desajustada para admirar exageradamente a sua própria imagem, não pode ter outro efeito senão o de debilitar o crescimento pessoal. Não infrequentemente, ao falharem o objetivo da perfeição, muitas pessoas acolhem sentimentos de culpa, frustração e vergonha, acreditando-se internamente defeituosas, más, indesejadas, inferiores ou inválidas, condicionando assim o estabelecimento de relações positivas que retroajam reforços construtivos. Tanto na clínica como na criação artística, tenho feito de delatar este tremendo segredo de Polichinelo social, e de rehumanizar o humano em nós, uma das minhas mais dedicadas paixões. Santo Agostinho defendia que só através da comunicação do indivíduo com Deus se faria possível o encontro dele com o Outro; prefiro a visão do contemporâneo Schillebeeckx, que defende que é através do Outro que se chega a Deus. A omnipotência e outros delírios humanos sobre a divindade são sempre perversões de excesso – só a plenitude, tomada como objetivo-guia (ainda que ideal) para a individuação de cada um/a, pode verdadeiramente aproximar-nos de uma mais reta verticalidade deífica. Talvez por isso tanto me digam as palavras de Marsilio Ficino quando, no século XIV, exclamou: «Conhece-te a ti mesma, ó estirpe divina em vestes humanas» – sem dúvida dariam um muito mais salubre e esclarecedor slogan do que toda esta dúbia constante campanha publicitária pró-humananoidice.  

 

Reabilitar VS Despreocupar?

 (...) 

 

Continua. 

 

[1] Hamlet.